Publicado por Alexandre S. Da Rocha
Há
mais de 50 anos, assisti a um filme cujo nome não me lembro. Não me
lembro, também, de quais foram os atores. Tampouco me lembro do enredo.
Deste, tenho, apenas, vaga recordação, se é que é mesmo memória e não
invenção minha para dar sentido à única cena de que ficou fixada em
minha mente. Esta, eu a tenho presente com plena clareza e revejo com
exatidão, como se a estivesse assistindo agora mesmo.
Creio –
apenas creio – que se tratava de especulação imobiliária em alguma
cidadezinha dos Estados Unidos. Havia o homem rico e de chapéu preto que
desejava utilizar ampla área local para um empreendimento milionário.
Em parte persuadindo e em parte corrompendo, parece que conseguiria
autorização do Conselho Municipal ou de uma assembleia de cidadãos – eu
avisei que não me lembro – para efetuar a construção naquele lugar. O
casal de protagonistas – a mocinha encantadora e seu namorado bonitão –
opôs-se à empreitada e, ao fim de muitas peripécias, conseguiu expor os
interesses inconfessáveis do magnata, impedindo que ele tivesse
atendidos os interesses egoístas: o clássico triunfo do bem contra o
mal, na época em que Hollywood era moralista.
Tenha
sido este o enredo ou esteja eu a confundi-lo com o de outro filme,
fato é que, aliado ao casal, estava um homem rústico e assertivo,
aparentemente um agricultor, porque trajava o tipo de macacão de frente
única que se chamava (e talvez ainda se chame) “jardineira”. Esse homem.
Ao longo do filme, criava problemas e levantava objeções por tudo e por
nada, mas estava do lado “do bem”.
A
única cena de que me recordo com perfeita nitidez ocorre ao final da
película. Resolvidos os problemas, o Conselho Municipal (ou assembleia
dos cidadãos, não me lembro) reuniu-se para aprovar a destinação
convencionalmente boa da tal área da cidade. Todos estavam a favor, mas,
quando o presidente perguntou quem votava “sim”, todos o fizeram, mas o
“criador de casos” gritou, das galerias, um sonoro “não”. Com ar de
fadiga e desamparo, o presidente perguntou: “Mas por quê? Qual é o
problema agora?” E o “discordante”, sorrindo, respondeu com a frase que
jamais esqueci: “A unanimidade não é democrática!”
Lembrei-me
da frase e da cena vendo a posse de D. Dilma Rousseff em seu segundo
mandato presidencial. Após 40 minutos, aproximadamente, de fala da
presidente empossada, fui impactado pelo inesperado. Este não veio do
discurso principal, mas – pasme-se – da fala do senador Renan Calheiros.
O
senador Calheiros está longe do que costuma ser apontado como reserva
moral da nacionalidade, lugar comum com que, na época do filme a que me
referi, eram saudadas as pessoas supostas acima de qualquer suspeita.
Coincidentemente, sua vida pública revela uma adesão permanente e
irrestrita aos governos – um governismo para ninguém botar defeito. Pois
foi o senador Calheiros que fez um discurso falando dos princípios
democráticos e das responsabilidades do Congresso Nacional. Em certo
trecho, ele disse: ““Estou convencido de que a oposição, que é parte
essencial do poder Legislativo, tem como contribuir dada sua
responsabilidade e maturidade. O espaço da oposição é sagrado, sua voz
critica insubstituível. Antes ser crivado pela crítica do que ser
arruinado pela bajulação. Onde não há espaço para a antítese, os elogios
devem ser vistos com reserva. A crítica, é a primeira manifestação de
quem deseja ajudar e, em última instância, é o exercício pleno da
liberdade de expressão, alicerce supremo da democracia."
Nesse
momento, o rosto de D. Dilma não revelava entusiasmo. Minha primeira
impressão foi a de que ela não havia gostado de ouvir palavras como
“oposição’’ e “crítica” em uma festa cívica que, afinal de contas, era
dela. Pensando melhor, talvez sua expressão revelasse apenas o cansaço
do corre-corre eleitoral ainda não mitigado pela placidez da praia de
Aratu, ou possíveis noites mal dormidas na tentativa de costurar a base
aliada à custa do alentado ministério.
Por
que terei pensado mal de D. Dilma, ainda que só por um momento, e por
que me terá emocionado o discurso do senador Calheiros, se ele só diz o
que é óbvio para qualquer democrata?
A razão, descobri no facebook,
lendo o comentário de uma senhora, aparentemente afeiçoada à
presidente, que criticava as pessoas que a “defendiam” da opinião de
duas jornalistas que a chamaram de feia e deselegante. Os defensores
presidenciais reagiram dizendo que feias e deselegantes eram elas, as
jornalistas. A senhora cuja postagem li (e compartilhei), luminosamente
coerente, dizia que não faz sentido objetar a que se critique uma pessoa
por sua aparência criticando por sua aparência, em troca, os autores,
ou, no caso, autoras, da crítica inicial.
Mas
o que disse essa senhora que me despertou admiração a não ser o óbvio?
Que tempos são esses em que o óbvio espanta e desperta elogios?
São
tempos em que os debates reproduzem o nível do bate-boca dos moleques
da minha infância: “Tua mãe é isso ou aquilo! – Não, é a tua!”
As
opiniões disfarçam ofensas. Os argumentos são substituídos por esquemas
visuais ou vocabulares cuja simplificação absurda distorce a realidade,
de modo que se fica a cogitar se a composição decorreu de ignorância
mesmo ou de má-fé de quem a fez. Não se dá ao Outro o benefício da
dúvida. A expressão latina, usual outrora, ad argumentandum tantum,
que já fora banida do vocabulário quando os estudos clássicos entraram
em desuso, teve expulso, também, o conteúdo dos diálogos e dos
raciocínios. A fórmula indicava que se iria acolher as alegações do
adversário apenas para argumentar, isto é, sem admitir sua veracidade ou procedência, mas tão somente para ter a oportunidade de oferecer refutação racional.
A
tolerância foi jogada fora junto com o latim. O “mas” atrai o ultraje e
o “discordo” convida à agressão. Não sei se as pessoas, em grande
número, tornaram-se completamente desprovidas da capacidade de
argumentar ou se nossa “emotividade latina” exacerbou-se a ponto de não
precisar sequer ouvir o argumento da outra parte para considerar o
opositor inimigo do povo, da Pátria, da humanidade e do que mais seja.
Isto revela uma fragilidade extrema que se traveste na tentativa de
prevalecer pela redução do contraditório ao silêncio.
Estamos
sob o domínio da verdade quantitativa. As pessoas imaginam que sua
verdade decorre e depende da unanimidade. A mentalidade dominante parece
ser a de uma versão
(cuja veracidade histórica é questionada) da destruição da famosa
biblioteca de Alexandria, em que o califa Omar ibn Al-Khattab teria
dito: “se esses livros estiverem de acordo com o Alcorão, não precisamos
deles; e se eles se opuserem ao Alcorão, devem ser destruídos. A
diferença é que não se clama pela destruição das opiniões e suas
expressões; clama-se, apenas, pela obrigatoriedade da repetição delas,
pela reiteração das mesmas posições e pelo elogio permanente de alguma
visão de mundo cuja contestação tornou-se crime capital – na Idade
Média, seria arte do demônio, merecedora de um auto de fé.
Entretanto,
eu conheço algumas dessas pessoas e sei que elas dizem ser democratas;
mais, elas acreditam, em boa –fé, que são democratas! Senhores, (ou
senhoras e senhores, como é politicamente correto) seja qual for a
opinião que tiverem e independentemente do mérito que lhe atribuírem,
deem-me (e, para esse efeito a toda gente), como coisa natural e digna, o
direito de discordar. A unanimidade não é democrática!
*Alexandre
S. Da Rocha - Doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ); Professor aposentado da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ); Antigo assessor do Inter-American Defense College,
Washington, D. C.